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Onde nos perdemos pelo caminho?

caminhos

Por Denis Eduardo Serio

Para começar, preciso deixar muito claro uma coisa: não acho que todo evangélico deve pensar como eu, muito menos votar como eu. Pelo contrário, abomino tentativas de universalização de pensamentos, como houve na recente eleição. Vi pastores consagrados e outros surtados por aí dizendo que “se você é evangélico, é obrigado a votar em Aécio”. Nada pode ser mais arrogante. Então, não tomem este texto como um panfleto político, até porque meu voto no primeiro turno não foi na candidata do PT. Tampouco acho que este texto é direcionado a toda a população evangélica brasileira. Dilma Rousseff não teria sido reeleita se nós tivéssemos migrado 100% dos nossos votos para o candidato conservador. Mas me sinto praticamente compelido a tocar na ferida da igreja e tentar entender em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, perdemo-nos pelo caminho.

Em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, o povo evangélico começou a achar normal esquecer os ensinamentos de Jesus? Porque no Evangelho que eu tenho aqui na minha frente, posso ler “Tive fome, e me deste de comer”. Quando foi que modificamos o texto para “Tive fome, e me deste uma vara de pescar?”.

Vejo pessoas realizando doações para mendigos e comunidades pobres por meio de suas igrejas, mas essas mesmas criticam o Bolsa Família, mesmo diante das crescentes evidências de que ele é um sucesso retumbante, como a saída do Brasil do mapa da fome da ONU. Não teria uma ação governamental muito mais amplitude que nossas benevolências pessoais, muitas vezes carregadas de vaidade?

E pior, vejo cristãos xingando de vagabundos os beneficiários de tal programa, como se julgar pessoas que nem ao menos conhecemos fosse normal. Na verdade, só neste tema, vemos que muitos evangélicos brasileiros pegaram dois ensinamentos de Jesus, picaram e jogaram na fornalha ardente.

E em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, passamos a acreditar que postar mentiras nas redes sociais com o fim de escarniar o candidato em que não votamos é uma atitude digna de um cristão? A quantidade de boatos e informações sem provas compartilhadas nas últimas semanas deixou qualquer pessoa de boa vontade chocada. Vi evangélicos compartilhando que Joaquim Barbosa havia aceitado convite de Aécio para ser ministro da Justiça. Também vi gente postando que beneficiário do Bolsa Família ganha R$ 2.500, ou que as urnas não aceitavam quando alguém digitava 45. O falso testemunho nunca esteve tão em moda nas nossas igrejas sociais.

Em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, virou normal a falta de respeito a lideranças estabelecidas? Tudo bem se você não gosta da Dilma. Discordo da sua avaliação, mas respeito. Mas antes de postar bobagens nas redes sociais, os cristãos deveriam no mínimo lembrar que, para que tivéssemos a liberdade de vociferar nossa ignorância para que os outros a compartilhem, alguém há 30 anos estava no pau de arara recebendo choques e dividindo um quarto escuro com uma adorável jiboia.

Em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, aprendeu-se que há um modo de produção único para que os cristãos apoiem, no caso o capitalismo? A Bíblia não defende modelo algum, mas ideias, e uma das ideias mais propagadas por Jesus e por diversos profetas é que o amor ao dinheiro é um dos grandes males do mundo. Portanto, meu irmão, você pode ser socialista numa boa e continuar evangélico. Mas é preciso lembrar que qualquer pessoa que chame o governo petista de socialista deve também acreditar em unicórnios e renas voadoras.

Em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, transformou-se em fato admirável que pastores tomem o dinheiro investido por pessoas para o ganhar de almas e façam de seus programas meros panfletos partidários? E pior, em que momento foram outorgados por Deus a essas pessoas os títulos de representantes absolutos dos evangélicos? Toda vez que vejo um deles proferir a frase “nós, cristãos, temos que” sinto uma ojeriza que mal posso explicar.

Em que momento, entre o Gênesis e o Apocalipse, defender uma ditadura que matou e torturou tanta gente virou sinônimo de bom caráter? Hein? Digam-me, por favor.

Como temos a certeza de que estamos entre o Gênesis e o Apocalipse, resta-nos uma solução, meus caros: encontrar onde nos perdemos e tentar levar um pouco de bom senso a essa teologia do ódio que tomou conta de boa parte dos púlpitos. Estou à procura.

*Denis Eduardo Serio é jornalista, evangélico de berço e progressista de adulto